quarta-feira, 10 de junho de 2009

Apresentação Revista Folhas - Letras & outros ofícios

O Grupo Poético de Aveiro agradece a todos os que participaram e tornaram possível a apresentação de mais uma revista folhas-letras&outros ofícios. Aos que participaram enviando os textos, aos que colaboraram no aspecto gráfico e aos declamadores que foram muito importantes para a festa da Poesia o nosso muito obrigado. Agradecemos, também, publicamente, o apoio da Câmara Municipal de Aveiro, um apoio fundamental para a concretização deste projecto que é de todos.Poderá adquirir esta revista na Livraria Municipal de Aveiro, na Livraria Buchholz na Praça Marquês de Pombal, junto ao Tribunal de Aveiro, ou contactando o Grupo Poético de Aveiro.


GPA

Declamadores na apresentação da Revista














































Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

BOLETIM DE NOTÍCIAS»
No ano de 1846 é publicado o primeiro jornal em Aveiro




É normalmente considerado O Campeão do Vouga como o primeiro jornal impresso e publicado em Aveiro. Marques Gomes assim o mencionaria nas suas Memórias de Aveiro editadas em 1875,
Este jornal politico, literário e comercial teve e o seu primeiro número publicado em 14 de Fevereiro de 1852.
Impresso no n.º 16 da rua Larga (actual rua de José Estêvão) era propriedade e administrado por Manuel Firmino de Almeida Maia tendo como seu redactor principal o pai do romancista Eça de Queiroz, José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz, a residir então no solar de seu pai, o Conselheiro Joaquim José de Queiroz, em Verdemilho. Entre os seus colaboradores iniciais contavam-se, entre outros, José Luciano de Castro, o nonagenário poeta Francisco Joaquim Bingre e Bernardo de Magalhães.
No entanto, o jornal Conimbricense, na sua edição de 22 de Novembro de 1879, o seu responsável, Joaquim Martins de Carvalho (1822-1892), refere ter em seu poder dois exemplares, os números 2 e 4, de um pequeno periódico impresso «no papel fino das cartas mas de formato maior do que as de uso ordinário, em formato 4.º, impresso só de um lado, e publicado em 1846, com o título de Boletim de Notícias». Surgira este Boletim depois de, em Lisboa, a 6 de Outubro, ter ocorrido um golpe de estado palaciano, que ficaria conhecido como a «emboscada». Ocupava-se o mesmo, unicamente, com as notícias do movimento que se ia desenrolando por todo o país, mas referindo-se essencialmente ao que ia ocorrendo em Aveiro e no seu distrito. Lutava-se contra o golpe planeado por Costa Cabral e posto em prática por Saldanha, com o apoio de D. Maria II, que conduziu à exoneração e queda do governo do Duque de Palmela e à constituição de um ministério que continuaria uma politica governamental de cariz autoritário e centralista idêntica à instaurada pelo governo Cabralista. Desfaziam-se as últimas esperanças do movimento popular, iniciado no Minho, que ficara conhecido como a revolta da Maria da Fonte.
O novo governo, afim de melhor conter os protestos que naturalmente se desencadeariam, decreta, com a duração de um mês, a suspensão de todas as garantias constitucionais, provocando a suspensão de todos os jornais políticos, só permitindo, além do Diário do Governo, jornais científicos e literários.
Apesar da proibição governamental, e podendo mesmo ser considerado como clandestino, é publicado em Aveiro, no dia 11 de Outubro ás 11 horas da manhã, conforme se fez mencionar logo por baixo do seu título, o primeiro número do Boletim de Notícias. O n.º 2 é datado de 12 de Outubro e o n.º 4 tem data de 14 desse mesmo mês. Tinha edição diária e coincidia a sua publicação com o início da guerra civil da Patuleia.
Alertado por esta notícia Marques Gomes procedeu a investigações dando conhecimento das mesmas nas páginas do bissemanário Distrito de Aveiro (jornal de vida longa que foi publicado entre 1871 e 1909, sendo seu proprietário, director e redactor António Augusto de Sousa Maia).
Afirmava desconhecer a existência do Boletim de Notícias, o mesmo sucedendo com a maior parte dos seus conterrâneos, afirmando não saber quando saíra o primeiro número nem tão pouco quando terminara a sua publicação. Podia assegurar agora ter sido o mesmo publicado nesta cidade e que não se teriam chegado a editar vinte números, de acordo com a informação que lhe fora prestada por pessoa que participara na sua impressão. Rangel de Quadros, nos Apontamentos Históricos, refere a saída de apenas doze números, sendo os três primeiros redigidos pelo Governador Civil de Aveiro e os restantes pelo seu secretário-geral.
Ambos estavam errados no que ao número de edições dizia respeito, como veremos adiante.
Nada constava no Boletim de Notícias quanto ao local da sua impressão. À data apenas existiam duas tipografias em Aveiro. Uma era a do Governo Civil, criada pelo primeiro governador do distrito, José Joaquim Lopes Lima. A outra era propriedade de Joaquim António Plácido, onde não constava que à data se imprimisse jornal algum.
Confirmou-se que o Boletim de Notícias fora impresso e era propriedade do Governo Civil de Aveiro, redigido pelo próprio governador, Custódio Rebelo de Carvalho e pelo seu secretário-geral, José Pereira de Carvalho e Silva.
No seu segundo número o Boletim referia que o Distrito de Aveiro sempre resistira à tirania e que «por combatê-la tem tido tantos sofrimentos» pelo que «não podia receber sem protestar o que hoje se lhe preparava». Apenas constara em Aveiro que o partido Cabralista «esquecido da moderação e generosidade com que havia sido tratado se tinha revoltado», as pessoas influentes da cidade reuniram-se no Governo Civil tendo decidido sustentar a todo o custo o movimento nacional e tomaram as medidas que as circunstâncias exigiam. Assim, no dia 11, «reuniu-se a Guarda Nacional, vitoriou-se o povo, a coisa popular e a Carta, e acompanhados de um concurso imenso de povo dirigiu-se ao Governo Civil e seguiram-se as diferentes ruas da cidade, repetindo os mesmos vivas, que eram recebidos e respondidos com o mais decidido entusiasmo». Concluía «Em poucos dias estará armado todo o Distrito, e marcharão para onde se lhes ordenar tantas, ou mais forças do que as que já se prontificaram para salvar o País».
No seu n.º 4 noticiava, o Boletim, que o entusiasmo popular crescia de dia para dia e que o triunfo era já infalível. No que respeitava à situação em Aveiro informava que nesta «cidade patriótica se vai armar um corpo que marchará para Coimbra a fim de operar convenientemente», e que para Vila da Feira tinha partido o ilustre cavalheiro Mendes Leite afim de organizar um batalhão nacional móvel.
Como notícia de última hora informava que «por cartas particulares consta que os facciosos Cabralistas já foram escarmentados pelo povo nas imediações de Lisboa. Centenas de cidadãos têm saído daquela cidade a engrossar as fileiras das forças populares de Sintra, Vila Franca e outras localidades. A causa do Povo triunfará irremediavelmente da tirania dos Cabrais».
Mas Joaquim Martins de Carvalho voltaria a abordar a questão do Boletim de Noticias nas páginas do Conimbricense.
Em 4 de Maio de 1880 refere ter recebido numerosa correspondência oficial que fora dirigida, em Novembro e Dezembro de 1846, ao Marquês de Loulé, então Governador Civil de Coimbra, correspondência que ficara oculta naquela cidade para não cair nas mãos dos Cabralistas, quando as forças populares retiraram para o Porto.
Pois, entre toda essa correspondência encontrava-se um ofício do Governador Civil de Aveiro, datado de 22 de Dezembro de 1846, remetendo o n.º 33 do Boletim de Notícias, que tinha sido publicado em Aveiro nesse mesmo dia.
Se não foi o último número publicado poucos mais terão conhecido a luz do dia porque, na mesma data em que saiu a público o n.º 33, as tropas do Marechal Saldanha massacravam, em Torres Vedras, as forças «patuleias», iniciando o seu avanço em direcção ao Porto.
O Boletim de Noticias tinha, ingloriamente, cumprido a sua missão.


Jorge Campos Henriques

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

ERA ASSIM NA BEIRA-MAR…



Sou filho duma simbiose difícil: nasci na freguesia da Glória, ao que me dizem ali para os lados da travessa de São Martinho, mas filho de pai "cagaréu", marinheiro, e de mãe "ceboleira".
Já lá vão os tempos em que se roubavam os andores, se apedrejavam os namorados das freguesias rivais, se ridicularizavam, reciprocamente, as referências caracterizadoras dos nascidos na Vila Velha, a Glória, e na Vila Nova, a Vera-Cruz.
Sou simbiose disso tudo: fruto do salgado do peixe maila cebola e a chanfana.
E, por isso mesmo, quando olho para a freguesia onde nasci — a Glória — não sou capaz de nela pensar sem deixar de também me sentir vestido de camisa de linho branco e de manaia azul, roupas próprias do marnoto da Vera-Cruz.

***


Os meus pais casaram-se ainda nos tempos em que existiam diferenças profundas entre as gentes da Beira-Mar e da Glória.

Em casa da minha avó materna, na Glória, comia-se numa mesa como as de hoje, e as pessoas sentavam-se à sua volta em cadeiras normais. Cada conviva tinha os seus pratos, um ladeiro e um sopeiro, o seu copo, os seus talheres, o seu guardanapo. Vivíamos num primeiro andar, com soalho de madeira. A cozinha era uma divisão separada da sala de jantar.



Em casa da minha avó paterna, na Beira-Mar, uma casa térrea situada na então chamada rua de São Roque, comia-se, normalmente, numa cozinha de chão batido, coberto de junco fresco, frequentemente renovado, que deitava um cheirinho que era um regalo. Num canto ficava a lareira onde estava uma grande panela de ferro, de três pés, cheia de água permanentemente aquecida por um brasido que o meu avô Ti Luís, sentado num banco corrido encostado à parede, ia alimentando com imenso carinho. Era ele quem normalmente cozinhava.

Jamais esquecerei as caldeiradas que ele preparava, em banho maria, com o desvelo inexcedível próprio de quem tinha andado ao mar e ao rio, na sempre sofrida arte da pesca. O peixe tratado por quem o apanhou sempre foi objecto de cuidado que o leigo não domina. É que quem foi pescador sabe dar um valor acrescentado aos mimos que o mar dá. Desde o amanhar ao temperar de sal, desde o colocar, em camadas, as rodelas das batatas e das cebolas até ao esmero dos últimos condimentos que só ele conhecia, tudo isso obedecia a um ritual que era muito seu. O cheiro que se desprendia da panela era o melhor convite para nos aproximarmos da mesinha baixa colocada no meio da cozinha. E sentarmo-nos à sua volta, nos mochos, cada um com o seu talher, à espera que a minha avó Guilhermina trouxesse a bacia onde previamente, com a “escumadeira”, colocara, com imenso cuidado, a caldeirada. O meu avô ti Luís, com as dificuldades de quem é manco levantava-se, então, da lareira e ocupava a cadeirinha baixa que a minha avó já lhe tinha ajeitado. Depois sentava-se ela, separada do meu avô só pelo “palhinhas” com a sua litrada de tinto que ela colocara no chão e que servia aos dois.

Procurando copiar com enorme zelo todos os gestos dos meus avós e do meu tio, irmão de meu pai, que gostava muito de mim e me conduzia naquele mundo da Beira-Mar a que não estava habituado, arriscava avançar com o meu garfo em direcção à bacia, tirando o conduto do quinhão que me tocava.



Relembro tudo isto com uma saudade que me emociona sempre.

Quando o meu avô levava à boca o “palhinhas” para emborcar o seu golo de tinto, todos paravam de retirar comida da bacia. Só se recomeçava a comer quando ele voltava a pôr sobre o junco o pequenino garrafão. Enquanto ele bebia, ninguém tocava na caldeirada.
Estas paragens, ao princípio, metiam-me engulhos. Não descansei enquanto não ganhei coragem para perguntar porque se parava de comer sempre que o avô se servia do “palhinhas”.
E foi a avó Guilhermina quem deu a explicação. “É fácil de compreender, meu menino; enquanto qualquer um dos avós bebe, os outros param para que uns não comam mais do que os outros.”

Calei-me. A explicação tinha uma lógica irrefutável. E, no fundo, revelava um fortíssimo sentido de solidariedade, de comunhão, tão próprio das gentes da borda de água. Das gentes que dependiam da Ria e do Mar e que sabiam alimentar, com as dificuldades da vida, uma enorme e profunda irmandade.


Gaspar Albino,

17 de Maio de 2009

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12



SALVÉ! MINOTAURO AVEIRENSE.


Aveiro. Tenho ódio a quem fale de ti com palavras brandas, dor infame e alma crispada. Sei bem minha beleza eterna, que em teu âmago, não é a ria que importa, não são os amores de ovos, nem os doces das montanhas, são as penas que cumpriste para ser livre, embora te comprem novos grilhões, com frases feitas embutidas, para usares nos verões. Tua alma Aveiro, está escondida por entre bidões de lata e corpos de prata. Está ausente numa memória distante, no olhar jovem pulsante. Nome. Tu ser difuso e abstracto, quase só nome entre fronteiras encravado, tens mil faces e milhões de destinos, pois que encontro teus filhos abraçados à vida, verdadeiros. E fortes. Pois que és dura, que teu calor arde, que estás desventrada de sonhos e de metal e de betão. Tenho raiva a quem te chama nomes cálidos e sonolentos, que não está a ser fiel á solidão que te procura, que em cem noites de loucura, vi eu ! Muitos seres arrependidos. Aveiro das bocas sujas dos tascos, tua poesia está escondida em praguejares sórdidos, tu Aveiro, és a tua própria mentira e só te ama quem te procura, nas margens, debaixo de pontes entre seres alados, mutilados. Entre cheiros e peles quentes, entre vidas e dias amaldiçoados. Esqueçam os boletins e nomes disfarçados, pontes flutuantes e crepúsculos arrepiados, és fome de ser e futuro encaminhado, és liberdade e corações desamarrados, amo a tua fúria de ser sem teus ricos pedrados, tua juventude criativa sem tuas peças masturbadas e teu doce correr de ria abençoada!


Ulisses Curado Figueiredo

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

MATINA


A noite assenta agora a sua eternidade sobre a minha vontade. Quando se perde um amor assim perde-se tudo... Enquanto vai durando o teu desdém, chegam-me à memória outras pessoas assim... A Felicidade, por exemplo, recusou uma vez a poesia e nunca mais a encontrou. Depois, como seria de esperar, pôs-se-lhe a questão do amor: nunca quis saber-lhe o caminho largo e nunca pôde redimir-se. Ambição nunca lhe faltou. Não que fosse egoísta, mas imaginava a vida em batalhas ganhas palmo a palmo, para o que guardava as mãos, não para sensibilidades escusadas e vãs. Era a melhor e a mais disciplinada de todas as mulheres e de tudo saía bem, até dos desgostos, que arrumava em prateleiras protegidas por bambinelas. Vive bem consigo e com os seus barbitúricos. Nunca se despe. Mas, entre as águas do rio, que verdade ainda flutua? Entornei um copo de vinho no sangue e apetece-me dançar durante toda a madrugada.

Por mim, continuo a vestir-me. Sei que, por muito tempo, continuarei a vestir-me. E, vestido, nunca mais serei o mesmo. Hás-de, minha Aurora, uma aurora, sair detrás dos montes e dar a vida e o sinal às flores. Mas em que mundo? Se havia um fio, que eu bem vi, e se partiu e desprendeu e deslizaste, balão fugido antes da festa, para o céu que retomaste… Ah… como está triste o meu coração, enquanto o meu peito se agita de aflição, e enquanto fixo, silencioso, o horizonte!... Além!... Além!... Onde todos os meus desejos se somem!


Tiónio Delmar

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

Haikai I


Por que estás triste?
A Ria enche e diz:
Acolhe-te nestas cores.



Haikai II


Um pássaro que pica moliço na Ria,
levanta voo e festeja.
Fica a água em concerto.



Haikai III


Ouve-se o silêncio deste estádio
como, ao morrer,
O inferno me abrirá a boca.


Teresa Soares

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

AVEIRO EM REFLEXOS DE AMOR



Na ternura húmida
dos canais
que transportam
o azul do céu,
há gestos de corpos
invisíveis,
reflexos de amor
estampados em moliceiros,
pintados com desenhos
e frases improváveis.

Gaivotas cavalgam
o vento
vindo de um mar
tumultuoso,
que gera catedrais
de sal.

Silêncios congelados
na memória,
sopram aos meus
ouvidos
sons do andar de
tricanas e gritos
de cagaréus
em barcos
de outrora.

Já não passa
por aqui a muralha
imortalizada agora
no traço fugaz
de Siza,
mas tu continuas
menina,
com colo de princesa
e cabelos de varina.

As mulheres plurais
com restos de batôn
vermelho nos lábios,
sabem porque
te amei de repente.

Não finjas que não
me conheces
só porque não caminho
sobre as águas.


Sérgio de Azeredo Porto

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

A
Andrés Quintanilla Buey
A ARTE DO REGRESSO
Escutamos-te sem saber que te escutamos
Não há segredo para tão comum mistério.
Vieste para este dia
Vestido com o teu fato azul marinho
e o toque delicado de gaivota
no topo da tua cabeça resplandecente
Sobre a arte do teu regresso diz-nos tanto
esta ria, chão dos poetas a quem deste
um pedacinho de leira castelhana.
Por assim dizer és mestre neste poema
perfumado a flor de laranjeira.
Não há mistério para tão comum segredo
Vestido com o teu fato azul marinho
Escutamos-te, aqui, do lado esquerdo.

Rosa Maria Oliveira

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12


UM DIA


Um dia é só um dia.
Nenhum dia é mais que um.
Se um dia for mais que um
Todos os dias assim são iguais…
Mas… todos os dias são diferentes.
Não há um dia que seja igual


xxx

…..Tu deste-me uma flor
Só que…secou
Ficou sem cor
Sem alegria

Percebi
Que o amor não se pode tocar
Porque nos pode queimar

Eu queimei-me
Pelo amor
Mas não resultou
E assim
Fiquei magoada

Se alguém me voltar
A dar uma flor
Não a vou tocar


Rita Jorge

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

E SANTA SERÁS JOANA




Morreu com a idade intacta
Tanto por virulenta peste
Como por soberana ordem nefasta

Agrilhoada foi sua alma e vocação

Noiva do céu
Noviça do sonho e do mar
Tantas histórias por aí perdidas
Tantas lágrimas ainda por rezar

Do trono desceu Princesa
Para abrir suas mãos a toda a fome

Mil flores cobriram o seu nome


Regina

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

...
undécimo dia


Tenho tanto e tanto me é tão pouco
que não ter tudo é não ter nada,
rio que não corre à alvorada,
brilhante estrela que me tem louco.

Em cada palavra que me escuto,
se caio em mim, ou se em mim tropeço,
já tudo me é vão, já nada peço,
e já peço tudo e não dá fruto.

Meu cansaço ou fado ou arrepio,
alegria ou vida ou meu trabalho,
porque sofro ou morro, porque falho.

Só amor, só dor, só assobio
em mim soprando o som da tua voz,
engano de alma caindo após.



Pedro Estrela Santos

In “Plantar Palavras”
(em construção)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

PERDIDO E ACHADO



com a doação da Condessa
Mumadona de sua graça
tudo começou

logo nessa mercê
o carácter de Aveiro se talhou:
lhano munífico franco
só podia ser franca a feira

esse cunho de aveirense
enleva em eterno regresso mitológico:
quando aldeago ao laré pela cidade
(respeitem alvará
o cânone de D. José)
me tresmalho
sempre há
Hermes que acena caminho
ou Ariadne

(aveirense que oferece o novelo)


Paulo Pego

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12


PARA ANDRÉS


No silêncio escuro deste dia de Verão
ouço vozes
vozes dos poetas que me ensinaste

Que triste está Campo Grande
que triste está Valladolid

A tua voz firme de poeta
está dentro de mim
cantando a chuva
cantando a terra

Que triste está Campo Grande
que triste está Valladolid

Meu amigo
pastor da Poesia
guarda o teu rebanho
feito de pássaros
de mar e de sonhos

Que triste está Campo Grande
que triste está Vallodolid

A poesia não morre
apenas muda de lugar

Orlando Jorge Figueiredo

(Poema lido em Valladolid, em Outubro de 2008, na homenagem ali realizada pelo Grupo Literario e Artistico Sarmiento e pela Academia Castellana y Leonesa de la Poesia, de que o poeta foi mentor e Presidente)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

LINHA DE ÁGUA


Imensidão de horizontes, linha de água
projectada a sal
a púrpura
a giesta brava

em dias de névoa a Ria é o mar
a Ria é o escaler da minha terra firme
espelho azul e verde
e verde e azul em anémonas de moliço
milhas de sol-pôr no quebra-mar

em dias de sol a Ria é vida
música, som, La Bohème d'Aznavour
ondas que levaram gentes e murmúrios
sons numa só língua
que regressou mestiça e negra
e branca e pura
língua de areia e sal
mescla infinita de regressos e partidas

e volta o verde de tão verde
volta o sorriso ao quebra-mar
em dias de chuva a Ria é rio
lágrimas fundas de um outro dia igual
enquanto o moliceiro se espelha nos canais
desliza suave a minha linha de água



Olinda Beja

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

AVEIRO




Olho-te e fico no encanto
Coração descompassado
Envolvida pelo quebranto
Do teu encanto nublado…

E se te vejo, sedenta
Nessa paisagem de mágoa
A paisagem se apresenta
De sede, morta ao pé d’ água;

E nas esteiras de luz
Que o moliceiro, na ria
Em sulcos deixa, ao passar

Eu vejo, a pontinhos de luz
As cruzes do dia a dia
Cada alva a inaugurar!...



Maria Mamede

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

O POENTE



O poente, que as árvores da montanha
coam, traz-nos a serenidade,
o sentir o poder da noite,
o brilho da certeza. É uma chuva
por onde corre a finitude,
a fusão do eu com as coisas.

Parece que as estrelas estão
mais próximas; que o silêncio
nos aconchega o olhar: sinais
que ladeiam o caminho,
paisagens que nos inquietam.

Enquanto nos preparamos para
a viagem, apreciemos a frescura
e o espírito de um espumante,
rápida imagem, transportando-nos
à caverna dos sonhos, tornando-os
transitória memória, ou sombra.


Manuel Dias da Silva

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

MARNOTO



Paisagem pintada de luz.
Sombra cúmplice
Nas asas das gaivotas.

Rosto tisnado
Pelo beijo do Sol
E pelo ciúme do sal.
Olhos remendados de azul.

Céu. Mar.
Nuvens de espuma
A salgarem o horizonte.

Pirâmides salinas,
Num deserto de branco.
Pés que se afundam
Em lágrimas movediças.

Uma faixa de ria
- Veia. Sangue. -
Embala a proa d’um moliceiro.

Mãos calejadas,
Pela sabedoria dos tempos,
Cultivam flores de cristal
No chão das marinhas.

Meia-lua a flutuar.
Ventre pejado.
Salineiro na maré.

O rodo vai e vem
Na contradança dos braços.
Seduzidas, as águas
Desfazem-se em abraços.

O vento varre a distância.
Uma nesga do passado
Repousa na memória.


Lurdes Breda

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

POSTAIS DA RIA

Que linda que está a Ria
Postal tão belo de Aveiro
Resplandecente de prata
Superfície rica e fria
Sulcada por moliceiro
Ao som desta serenata
Desde Mira até Ovar
Dá sustento a muita gente
Mesmo em dias aziagos
Nas Gafanhas a passar
Com seu caudal imponente
Seja em Ílhavo ou em Vagos

Aveiro fica no centro
Dum percurso que se inveja
Escrito em verso ou em prosa
Fora do mar, terra dentro
É muita ria em Estarreja
Inda mais ria em Murtosa
Maravilhas ribeirinhas
Ao longo do seu trajecto
Atraem muitos turistas
Costa Nova das risquinhas
S. Jacinto é arquitecto
O Areínho dá nas vistas

Muito sal de Portugal
É gerado com clareza
P’la Ria e p’lo Salineiro
Paisagem tão natural
Que compara com Veneza
Esta cidade de Aveiro.

José Guerreiro

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

JUNTO AL EMBARCADERO



I

En la flor de la tarde mansamente
picotean el tiempo unas palomas,
y mientras unos hombres, repasan primaveras
al cabo de los años.
Jugando las sonrisas,
a lomos de los sueños galopan horizontes.
y Aveiro se ha hecho plaza,
y en la plaza unos bancos varados en abril.


II

Y al cabo de la pena regreso de las nubes
junto al embarcadero para sentirte mía
derramada en mis ojos anclada en la mirada.
Y están los soportales llenándose de lunas,
y la melancolia recorre mis deseos
de noche inacabada…
Y espero, siempre espero para volver a verte,
para llenarme todo entero de tu amor.
Me sabes desvelado, me sabes todavia
perdiéndome en tus calles embriagado de azules
hasta la luz del alba florecida en mis manos,
hasta el barco, aquel barco que sabe de mis versos,
que está varado y sueña una estela en el mar.


José Antonio Valle Alonso
(Valladolid)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

AS ÁGUAS QUE CONHEÇO SÃO DA RIA E DO RISO

Há nos sibilos álgidos que os moliceiros me trazem
Corpos de sal que se desmoronam bocas de sangue inaugurado:
São os barcos e a ria a quimera dos líquidos
A sede do contorno das gargantas.

Abrir esse coração junto ao verbo que a paisagem
Aquém ou além desta me desabrocha luz
Em canais ramificados?
Em que outro mundo se ouvem as águias de oiro
Tão lava que o voo lhe acende as asas como crateras?
E os estuários crescem inseguramente no distúrbio das crias.
Onde procrastinava ela os dias contra as órbitas
Esse primeiro dia do dilúvio?
Vinham aves sem canto na inconcebível súplica
Que se transmuda riso.
Que superabundância de vozes: entoar o fogo antigo
Como quem não tivesse nenhum dom
De insondável loucura
Onde a água é uma queimadura sagrada.

Quem me largou renovado aqui sufocado de espanto
Desta laguna de melancolia? Como
Te chamas tu
Tentáculo fincado em ti, um azul de prata
Dentro do mar de moliço
Que me retesas as velas no interior da memória
Instilando a sílaba
Alumbrada: aquela língua precária das estações cálidas
Sobre o eco da cidade
Porque o riso busca a metáfora da ria
Onde ainda se refrescam a prumo
As rudimentares moradas do coração das criaturas.

João Rasteiro

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12


A SALINEIRA



Rosto ao vento
gemendo sob o peso
da canastra de sal
a salineira carrega cristais de sonho
num sofrimento milenar
consentido.


Pés descalços e encardidos
fazem tape-tape
no lajedo do cais
e o céu se espelha
na doce calmaria da Ria.


Gaivotas nervosas
cruzam o espaço
com gritos estridentes
e os barcos saleiros
cheirando a maresia
balouçam ao ritmo
da descarga


Praguedo inocente
se espalha no ar
saído das bocas de carregadores
atarefados.




Ao longe
a grande planície
se espreguiça nos braços da Ria
e as ervas dos esteiros murmuram
as canções do vento.


De onde em onde
montes de sal
pontilham o horizonte
como seios voltados ao céu


Jeremias Bandarra

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12


HAMLET CHEGA AO PALCO

Hamlet chega ao palco no nevoeiro sonha
Hamlet é um jovem príncipe perturbado
O espectro surge do lado do mar
Passeia a macia talha de lã
Da sua túnica Hamlet muda
De rosto a máscara alegre
Sai do seu lugar e carregado
Agora de nuvens e presságios
De morte surge no palco
Nenhum espelho lhe remete
Respostas ao ser e não ser.


J. T. Parreira



Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

OVOGENIA



torres de prédios circulam
quatro mil carros poluem
a cidade serve de órgão
onde as mágoas se diluem.

viver nos canais da ria
pisar o chão ao seu lado
solo plano e maresia
rodo humano meio quadrado.

anoitece a uma légua
amanhece sem ar seco
sinto uma pequena trégua
da minha voz não fui eco.

último dia a galope
num embrulho multi-homem
o meu corpo em envelope
com um selo muito jovem.


Heleno Pinhal

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

ENTRE LAS BARCAZAS DORMIDAS EN LA RIA


Entre las barcazas dormidas en la ria
la música del mar inventa peces,
rayos de sombra e plata que recoge
un violinista rumano marcado por los rumbos.

Vamos de la mano, mi amor, entre palomas
llenándonos la boca de palabras nuevas.

Hay una plaza de superfície marina.
En su marea trae velas desplegadas
la historia de la sal, el canto de los hombres.

Fue en Aveiro, tal vez, un día sin metales
que nació cierta luz de mediodía,
un brillo de manzana antigua o de guitarra
que enarboló hermandades en el canto

o talló el salitre hasta erigir la luna
o le abrió camino al corazón mas puro
de la casa.

Qué me dices Orlando?
Cómo fue erigida la Casa de Aveiro?
Con que sangres y sueños resplandece
ahora como una simple muchacha?

Qué me dices António Luís de los gerânios?
De la mujer que vende su pan en la plaza,
un pan que es como un estallido de gerânios.

Gabriel Impaglione
(Argentina)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

ODA TRISTE DE AVEIRO



Aveiro, sueños húmedos de sal
recorren tus calles,
avenidas de sombras moliceiras
que tejen y destejen
un teatro de luz sobre las aguas;
rumor de estatuas que mece el viento
entre renglones cortos de mar
y gaviotas que lloran fados
con ojos de gôndola solitaria.

Sobre tus puentes trazó el amor
un retrato azul de adolescência,
viejo carnaval de azulejos desteñidos
que no es capaz de borrar el tiempo
y permanece anclado como un tapiz,
con hélices de luna, en esse féretro
tierno de canales que alumbra
cada noche la soledad del corazón.


Fernando Luis Pérez Poza
(Pontevedra)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

PREITO A AVEIRO


O nobre burgo de Aveiro
Nasceu ainda primeiro
Qu’ a nacionalidade
Hoje sumptuosa ostenta
Duzentos e cinquenta
Anos, erguida a cidade.

Aveiro nasceu talvez
Cedo…No século dez
Aqui num velho estuário
Tem sinais inda presentes
Das salinas existentes
Com o nome de “Alavário”.

No século treze eleita
A vila amena e perfeita
P’la sua prosperidade
Mil sete e cinquenta e nove
O Rei D. José promove
Aveiro a nobre cidade.

Nutro por Aveiro estima
E enalteço aqui em rima
Um mosaico onde emolduro
Esta cidade moderna
Firma e de pé… Quase eterna
Desafiando o futuro!...


Euclides Cavaco

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

CORAZÓN DE AVEIRO




Lluvia, fiebre, viento y ria.
Volátiles esperas a ras de agua.
Duna, barco, sangre y noche.
Mis manos que descubren oro y plata
a la orilla del mar,
cerca de Aveiro,
donde mueren las vocês que en la tierra
hacia sí me reclaman.

Yo me niego.

Porque siempre es la mar,
-el agua eterna-,
El dorado destino de los hombres
que transitan, resueltos, en sus ondas.
Y en la espuma de plata de las olas
es el mar el que trae nuestro alimento.

Aveiro es la novia engalanada
que viste sus encajes de luz
en la noche sin fin de su hermosura.
El mar completa el rito
y su voz nos arrulla mar adentro.


Donaciano Cantera del Rio
(Valladolid)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

MEIA-MAR, MEIA-RIA, ALGO-TERRA




Insinuas-te ao mar,
a meio de Portugal,
através de um rio feminino
sobre o qual te curvas
e estendes,
enquanto sonhas
suavemente embalada
e ritmada
por esses pitorescos barcos
que à noite a ti se encostam,
depois de um dia ao largo; -
fica, da visita,
o amargo sabor a pouco
e o grito rouco
de tanto te chamar…


David Metallica

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

AVEIRO, CAMINHO PARA A VIDA



Bajo el telón de un cielo clavado en la neblina
rasgué la tierra un dia buscando mis raíces

en la ceniza un barco encontré y así fue
que empezó la magia de la navegación,
alma de oceano abierto que le robô el ancla al corazón,

chispas de luz en el perdón de una sonrisa
colores de un espejismo
hecho poesia que me sorprendió
Aveiro al avistar en el altamar
…é só porque as tuas ondas
são puras a)



Brigidina Gentile
Roma, Itália



a) Palavras do poema “Mar”
de Sophia de Mello Breyner Andresen

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

AVEIRO



Digo Aveiro
digo luz
e mar inmenso.

Digo Aveiro
poesía
sentimento.

Abrazas a auga
co lume dos teus ollos.
Somerxida no azul
inundas o horizonte.

Na area conxugas os reflexos.
E bebes a sorbos
a maxia dos teus silencios.

Mar ondulante
de luces transparentes
onde florecen as sereas
e se mesturan as fronteiras.

Atravesas a cidade
tatuado na brisa
con ese raio de sol
que colorea os teus canles.

Nun navío de cores
sucarei os espazos.
Ireime e tornarei
enchida de burbullas
sementes e palabras.


Tornarei
cando o teu rumor me chame.
Cando a luz da túa auga
os meus soños ilumine.

Digo Aveiro
brilla a lúa
baila o vento.

Digo Aveiro
digo luz
e mar inmenso.


Asun Estévez
(Pontevedra)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

POEMA PARA AVEIRO




Nunca antes de ahora supe de vuestro mar,
de vuestra realidad de cada dia. Nunca vi amanecer
como aquí amanece, com olor a jazmín y a mar
acariciándome.

Ahora este mar es mi mar.
en él escucho su canción
y la música me llega al alma.

La palpo entre mis dedos
como palpo el cielo
llenándose de espejos en mis ojos…

Ni el mar tan vivo,
ni siquiera el horizonte
tan pleno de fragancia,
ni la mañana batiendo el vuelo
entre brisa continua y sosegada,
será capaz de apagar en mí
la fria escarcha
que cautiva mi cuerpo.


Araceli Saguillo
(Valladolid)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12



EM MEMÓRIA DE ANDRÉS QUINTANILLA BUEY




Morreste-nos. A todos.
No entanto, nasce um sol cada manhã,
Como dizias, e é justo,
A quem, como tu, a caminhar ficaste caminho
No caminho das tuas palavras,
Quem sabe, na margem de novas primaveras.

Confesso poeta metade terra, metade nuvem,
Inspiração e força buscando a paz
Nas duas eternas margens:
Que nos escutes ainda,
Nos aconselhes ainda,
Aglutines em torno da eterna poesia
Que sempre cultivaste,
Esse amor do canto que deixaste
Plasmado em tantas partes onde andaste.

Morreste-nos, amigo,
A todos nós.
À tua mulher e ao teu filho.
A “Juan de Baños”, o grupo, e ao “Sarmiento”,
À “Academia” e aos “Viernes” e à tua terra que cantaste,
E ainda ao “Grupo Poético de Aveiro”
Cujos trabalhos inspiraste.

Morreste-nos.
Seguiste o teu destino conquistado aos
Homens todos que tocaste além das palavras luminosas.
Ficaste farol do outro lado do tempo,
Voltado à praça dos cegos,
No jardim dos poetas,
Cheio de pombas e flores brancas e verdes.

Mas morreste-nos, amigo.
Morreste-nos.
A todos!



António Luís Oliveira



(Poema lido em Valladolid, em Outubro de 2008, na homenagem ali realizada pelo Grupo Literario e Artistico Sarmiento e pela Academia Castellana y Leonesa de la Poesia, de que o poeta foi mentor e Presidente)

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

O VERBO SALINAR

Eu ia a caminhar por aquela rua
(Eu caminhava por aquela rua todos os dias)
Até que de repente tropecei numa pedra.
Baixei-me para ver melhor a pedra.
Não era pedra: era um verbo.
De tropeção em tropeção
Lá fui o verbo conjugando.
Era um verbo da primeira conjugação
E ardia na língua quando o ia soletrando.

Era branco, o verbo
E havia em toda a parte:
Nas lágrimas, na pele
E especialmente no mar.
Experimentei dizê-lo
- Mas que coisa tão singular
“Eu salino”
Logo tu achaste engraçado
E também salinaste
E até o velho cansado
Nesse dia não cantou
Em vez disso salinou.

O mar foi-se enchendo de sal
E encheu tanto, tanto, tanto
Que passou a ser plural.
Foi então que, juntos, salinámos pelo mar fora
Enquanto vós também salinastes
E eles salinaram até ao romper da aurora.

Até que um dia, de tanto salinar, que grande tropeção
Todos tivemos um ataque de coração.

Andrea Henriques

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12


SEM TIMONEIRO


Assomei à janela do tempo e recordei a barca do teu olhar.
Sorvi na maresia das águas profundas as meias luas de promessas
E nas tuas redes vítreas rememorei cardumes de esperanças
Quando no verde da tua íris perdia o pé e me enredava na tua espuma
Quantas ondas, quantas marés, quantos maremotos naveguei!
Marinheira de água doce, com mestre de embarcação…

No barco ancorado do teu corpo aportei sem sobressalto
E voguei ao sabor dos dias e das noites com sabor a estrelas.
Flor de sal, alegre salpico de vida e de mar…
Veleiro enfunado de brancas velas de vitória
Regatas prazeirosas, sulcando doces vagas
Ventos de búzios entoando cantos de sereia.

Mas eis que uma tormenta assolou meu batel ao largo
Arrastado pela corrente deu à costa canal acima
E foi soçobrando numa ria de moliço
Que enlaçou meus remos e esverdeou meu casco
Cobrindo de perenidade e de algas minha proa altiva
Descerrando minha bandeira de afoita navegante.

Minha embarcação perecível naufragou nas águas salubres
E ancorou, sine die, no estreito quieto e aquoso
Na margem da vida, estibordo da saudosa partida
As cores de festa esmoreceram na ausência das viagens de mar alto
Entristeci nas águas paradas, no lodo do cais.
Sou moliceiro de Aveiro: não tenho moliço, nem timoneiro.


Ana Paula Mabrouk

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12



AMO-TE AVEIRO



Amo-te Aveiro, minha cidade
Cheia de sol e de nobreza
O mar te beija, te abraça a ria
Te afaga o vento e em melodia
Cantam poetas, tua beleza.

O sal te dá, vida alegria
Tempera, anima a tua mesa.
Teus dias calmos, de quieto céu
As tuas gentes hospitaleiras
E a amenidade do teu clima
Cativam, prendem quem a ti chega
Com ténues laços de singeleza.

Berço de artistas, de nobres gentes
Tão devotadas à liberdade!
Ninho de fé e de trabalho.
Amo-te Aveiro, minha cidade.

Teus moliceiros sulcando as águas
Soltando ao vento as negras mágoas
Seguem roteiros de fantasia.

Nesses caminhos de alva magia
Berço e tesouro d’algo impreciso
Repousam sonhos abandonados
Doces prelúdios do paraíso.


Aida Viegas

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

ENCONTRO INTERNACIONAL DE POESIA
Saudação aos Poetas Estrangeiros



1 – Aveiro, que já foi apelidada de berço da liberdade, também pode ser designada como cidade da poesia. Na verdade, ante a frequência com que se vão realizando em Aveiro jornadas internacionais de poesia; ante a expressiva variedade de elementos humanos, de vários países, que integram o grupo de poetas que hoje nos visita – parece que outra designação diferente da de cidade da poesia se lhe não ajustaria tão adequadamente…

2 – O facto permite-nos lembrar fugazmente uma teoria poética notável, defendida pelo grande filósofo Hans-George Gadamer, que consagrou uma parte muito apreciável da sua reflexão à fenomenologia da arte. Afirmava ele, na verdade, que esta se apoiava sobre uma base triádica constituída pelo símbolo, pela festa e pelo jogo.
Um traço comum une estes três elementos: a Liberdade. Realmente não há símbolo sem a presença livre e feliz de uma coisa e outra coisa, do simbolizante ao simbolizado e inversamente, como na tabuinha ou na pequena placa de cerâmica que, na Antiguidade, o hóspede e o hospedeiro partiam em duas metades que, mais tarde, no meio das incertezas do mundo e da vida, unindo-se perfeitamente, haviam de proclamar o reencontro feliz dos dois amigos. Quanto à festa, realmente ela não existe, digna deste nome, se não significa afirmação livre, auto-inclusão desejada na celebração que se realiza. O mesmo que acontece no jogo, que só existe quando se aceitam de modo integral as regras que o definem e onde cada um dos participantes se realiza na plena aceitação de todas essas mesmas regras.
Eis aqui, em resumo tosco e apressado, o que a teoria tão bela e tão sugestiva de Gadamer nos propõe para meditar.

3 – Não é festa, símbolo e jogo o que hoje aqui nos reúne? Eu julgo que sim, desde logo porque é a poesia que aqui reina e é ela a senhora por todos nós escolhida e venerada. É ela o centro da festa e é ela que com a sua graça luminosa nos une e nos dá o impulso para abraçarmos toda a cidade. É ela que assim dá sentido à vida que nem sempre vivemos como desejaríamos. Mas é ela também que junta liberdade e harmonia, participação e abertura, convívio e horizontes sem fim…

4 – Não queria terminar, poetas que vindes de longes terras a esta terra aveirense, sem vos dar um breve fragmento de uma página de inimitável ternura de um grande escritor aveirense pela sua terra (o Arcebispo D. João Evangelista de Lima Vidal):
“Nós, os de Aveiro, somos feitos, dos pés à cabeça, de ria, de barcos, de redes, de velas, de montinhos de sal e areia, até de naufrágios”.
Parafraseando o Arcebispo, creio que posso garantir-vos que, neste quadro que simboliza a alma aveirense, também vós, queridos amigos, passais a ter um lugar – um lugar que havemos de honrar tal como a vossa poesia.


Joaquim Correia

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

NOTA INTRODUTÓRIA




No presente número desta sua revista, o Grupo Poético de Aveiro quis dar uma especial atenção à data marcante que a cidade atravessa neste ano de 2009. Há 250 anos, o rei D. José assinou a passagem do burgo aveirense à categoria de cidade e, fossem quais fossem os seus motivos mais profundos, fez justiça. Desde então, por diversas vezes, Aveiro afirmou claramente a sua marca, a sua importância no todo nacional, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista económico, quer ainda como centro estratégico dinamizador das energias nacionais, ao nível da sua liderança de um pujante distrito, como ao nível da sua subtil presença cultural, assente nas tradições das suas gentes dedicadas e generosas.
No âmbito das celebrações que o município promoveu e apoiou, incluímos a nossa organização do Encontro Internacional de Poesia, a que demos o subtítulo de O Discurso Poético Em Aveiro, o qual contou com a presença de muitos autores do Grupo e de muitos poetas vindos de Espanha, da Itália e da Argentina, alguns dos quais não quiseram deixar de dedicar alguns poemas à cidade. São estes e outros poemas, lidos ou não durante o encontro poético referido, que incluímos no presente número da revista.


Grupo Poético de Aveiro

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Apresentação da Revista Folhas - letras & outros ofícios

No próximo sábado, dia 6 de Junho, na Feira do Livro de Aveiro, no Rossio, pelas 18h30m, o Grupo Poético de Aveiro tem o gosto de apresentar a sua revista folhas - letras & outros ofícios. Uma publicação dedicada a Aveiro que conta com a colaboração de vários poetas. A entrada é livre, apareçam e desfrutem da poesia.